A EVOLUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO DIREITO ACERCA DE CRIMES SEXUAIS
Iniciamos agora uma nova série de textos informativos, desta vez sobre os crimes sexuais. Neste texto introdutório, buscamos mostrar como o Direito entendeu e entende esse tipo de violência e quais os últimos avanços legislativos.
Gênero e Direito Penal
As diferenças de gênero sempre encontraram reflexo no Direito Penal. Mais do que isso, esse ramo do Direito vem historicamente contribuindo para a própria construção dessas diferenças, seja por meio de uma concepção da mulher como ser frágil e indefeso, que carece de proteção especial; seja por meio da criminalização de condutas que ressaltam e reforçam os diferentes estereótipos de mulher; pela punição diferenciada conforme a mulher desempenhe específicos papéis sociais; seja, ainda, pela imunização que se concede aos homens quando seus comportamentos vitimam as mulheres no contexto das relações de gênero; ou, por fim, pela criação de obstáculos à legitimação e valorização da palavra da mulher que se defronta com o sistema da justiça criminal.
O Direito Penal sexual é o ramo que impõe as maiores distinções entre homens e mulheres frente à repressão criminal de condutas sexuais. Tal fato é uma decorrência lógica da histórica associação entre mulher e sexualidade.
Até 2005, o capítulo do Código Penal que tratava dos crimes sexuais era chamado de “crimes contra os costumes”, revelando uma intensa carga moral. Neste capítulo, a proteção da mulher dependia de condições como ser ela uma “mulher honesta” ou ser virgem. O Código Penal é de 1940. Naquela época, a mentalidade do legislador estava voltada para tutelar a moral sexual. O Brasil de hoje exige, entretanto, que as normas sejam direcionadas para a proteção da integridade física e psíquica das pessoas e do direito ao exercício de sua sexualidade de maneira saudável e plena
Foi somente diante da pressão de movimentos feministas que dispositivos discriminatórios foram removidos do CP e o capítulo sobre os crimes sexuais passou a ser denominado “dos crimes contra a dignidade sexual”.
Até 2005 | Após a Lei no 11.106, de 28 de março de 2005 |
Posse sexual mediante fraude
Art. 215 – Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena – reclusão, de um a três anos. Parágrafo único – Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de dois a seis anos. |
Violação sexual mediante fraude Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. |
Atentado ao pudor mediante fraude
Art. 216 – Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: |
Atentado ao pudor mediante fraude Art. 216. Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal: (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009) |
Sedução
Art. 217 – Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: Pena – reclusão, de dois a quatro anos |
Crime revogado. |
Rapto violento ou mediante fraude
Art. 219 – Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso: Pena – reclusão, de dois a quatro anos. Art. 221 – É diminuída de um terço a pena, se o rapto é para fim de casamento, e de metade, se o agente, sem ter praticado com a vítima qualquer ato libidinoso, a restitue à liberdade ou a coloca em lugar seguro, à disposição da família. |
Crime revogado |
Extinção da punibilidade
Art. 107. Extingue-se a punibilidade: VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração |
Revogado. O raciocínio era mais ou menos o seguinte: se, mesmo depois do crime, e da consequente desvalorização a que a mulher foi submetida no mercado competitivo dos casamentos, ela ainda conseguisse um noivo que aceitasse sustentá-la para o resto da vida, cessar-se-ia, então, o principal dano decorrente do crime praticado. O bem jurídico protegido não estava centrado na liberdade sexual da vítima. O bem jurídico tutelado parecia ser mais a própria reputação da vítima, da qual, no final das contas, dependeria a sua chance de conseguir um bom casamento. Se, mesmo com a reputação manchada pelo crime sexual do qual fora vítima, a mulher conseguiu casar-se, então, não persistia motivo relevante para se punir o agressor, já que o “estrago” não fora tão grande. |
Uma visão geral da Lei no 11.106/2005 permite concluir que seu principal propósito (e mérito) foi adequar, ainda que superficialmente, o Código Penal de 1940 à realidade social e cultural contemporânea, tratando de eliminar do texto aquelas expressões ou dispositivos que aludiam gritantemente à posição que outrora a mulher ocupava na sociedade, bem como aos papéis que lhe eram atribuídos e aos padrões de comportamento que devia obedecer.
A vigência, em pleno século XXI, de tipos penais que tutelavam a liberdade sexual da vítima apenas se ela fosse considerada uma “mulher honesta” – definição que variava ao “gosto” dos juízes e doutrinadores – significava a representação máxima de um Direito Penal criador de gênero e discriminações inaceitáveis.
Apesar do grande avanço que a Lei de 11.106/2005 trouxe para diminuir o tratamento discriminatório, ainda haviam questões a serem alteradas, especialmente no que concerne ao crime de estupro. Até então, o crime de estupro se configurava apenas como a introdução do pênis na vagina, deixando de abarcar quaisquer outras condutas sexuais, que eram consideradas “atentado violento ao pudor” – possuindo pena mais branda. Assim, por exemplo, o sexo anal não tinha a mesma proteção do sexo vaginal e somente pessoas do sexo feminino poderiam ser vítimas de estupro. A norma não protegia, por exemplo, crianças e adolescentes do sexo masculino.
É somente em 2009 que temos uma mudança nesse sentido.
Até 2009 | Após a Lei 12.015 de 7 de agosto 2009 |
Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena – reclusão, de três a oito anos. Atentado violento ao pudor Art. 214 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal Pena – reclusão de dois a sete anos. |
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. |
Uma outra razão para justificar a mudança do crime de estupro é que ao tutelar somente a conjunção carnal, o fundamento era a preservação da função reprodutiva da mulher – já que ela poderia engravidar. Caso fosse solteira e engravidasse, “perderia valor no mercado”. E se fosse casada traria desonra para seu marido. Não se tutelava verdadeiramente sua liberdade sexual.
Esse tratamento diferenciado da conjunção carnal respondia, antes, a um forte componente moralista, que importava na compreensão da mulher como um ser inferior, cuja violação representava, mais do que uma agressão à sua autodeterminação sexual, uma ofensa ao direito de propriedade do homem, dono daquela mulher, fosse seu pai ou seu marido.
Outra mudança significativa da Lei 12.015/2009 foi a mudança da ação penal. Antes, ela era ação penal privada – a vítima tinha que processar seu agressor. Agora ela passa a ser ação penal pública (condicionada) – um dever do Estado. A ação penal privada dificultava muito que a vítima tivesse reparação.
Por Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, advogadas especialistas em direito das mulheres e sócias da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas.