De modo geral, sabemos que a lei Maria da Penha protege mulheres em situação de violência doméstica e de gênero. Mas como a principal referência que surge é a de que “em briga de marido e mulher se deve meter a colher”, costumam surgir algumas dúvidas a respeito da aplicação da lei fora de relações heteronormativas. Só maridos são sujeitos à lei? Só esposas são protegidas por ela? Quais são os direitos das mulheres LBT (lésbicas, bissexuais e trans) em situação de violência doméstica?
Quem é protegida pela lei?
Em primeiro lugar, é importante destacar que a lei Maria da Penha protege mulheres em situação de violência doméstica e intrafamiliar. Isso signfica que a violência cometida dentro de relações íntimas de afeto (como por namoradas, parceiras, esposas e até mesmo ficantes) e de vio
Na lei não está, como foi depois colocado na Lei do Feminicídio, por exemplo, que são protegidas apenas pessoas do sexo feminino. Isso restringe a aplicação da qualificadora do feminicídio para apenas as mulheres cis, ou seja, aquelas que foram designadas como mulheres ao nascer, excluindo-se as mulheres trans.
A Lei Maria da Penha, por sua vez, protege as mulheres cis e trans. É o que está previsto no art. 5, por exemplo:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
Assim, mulheres trans podem e devem receber a proteção da Lei Maria da Penha, como as medidas protetivas de urgência.
O que a Lei não protege, contudo, são os homens trans. Ou seja, aqueles que foram designados como mulheres ao nascer e que se identificam como homens. Mesmo que a violência ocorra dentro de sua unidade familiar em razão da transfobia, por exemplo, por não serem do gênero feminino não seriam protegidos pela lei.
Já deixamos claro que a lei protege as pessoas do gênero feminino de violência doméstica e intrafamiliar. Apesar de os casos mais emblemáticos serem aqueles que envolvem violência íntima de afeto, ou seja, em caso de ex-parceires, cônjuges ou namorades, a violência pode ser praticada por pessoas que sejam da mesma família (como pais, irmãos, primos, avós) e também em relação doméstica (como colegas de quarto e até mesmo vizinhos). Ou seja, por essa lógica, pessoas do gênero feminino já poderiam ser o alvo dessa lei, como uma mãe que bate na filha.
E relações homoafetivas?
No caso específico de violência em relações amorosas, a lei é super clara ao dizer que não há qualquer restrição em relação à orientação sexual da vítima, podendo ocorrer em relações homoafetivas. É o que diz o parágrafo único do art. 5:
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Por isso, mulheres que se relacionem com mulheres podem ser protegidas de violência doméstica pela lei Maria da Penha.
Vale dizer que a violência doméstica nas relações conjugais entre mulheres tem a mesma motivação da violência praticada entre casais heteroafetivos: é uma questão de poder, de sentimento de posse e controle sobre a outra, demonstração de poder pelo uso da força, reprodução da violência. Os tipos de violência também são os mesmos: psicológica, física, sexual, moral e patrimonial.
E romper o ciclo da violência tem a mesma dificuldade: falta de apoio familiar adequado, isolamento e silêncio na forma de enfrentar as agressões, lesbofobia social e familiar. Podemos concluir, portanto, que violência é violência e independe de orientação sexual.
E caso de violência doméstica entre homens?
Por mais que a violência doméstica possa ocorrer em relações não heteronormativas, apenas as que envolvam mulheres poderão ter o amparo da Lei Maria da Penha. Ainda que haja algumas decisões (poucas, frise-se) pelo Brasil que reconhecem a aplicação da lei em casos de violência entre dois homens, entendemos que essa não é a via adequada. Inclusive, este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que deve uniformizar os entendimentos desse tipo de caso.
Em primeiro lugar, pois a lei é muito mais punitiva para o eventual agressor, então não é possível fazer uma interpretação extensiva ou mais ampla se isso significar que pode prejudicar o réu no processo, com medidas mais graves.
Em segundo lugar, essas decisões que reconheceram a aplicação da lei Maria da Penha partiram do pressuposto de que nessas relações havia o “homem” (o agressor) e a “mulher” (o agredido) e que por isso seria possível fazer uma interpretação possível. Entendemos que esse tipo de argumento é extremamente homofóbico e machista pois naturaliza a desigualdade de gênero dentro de relações entre dois homens sem problematizar as suas origens.